Friday, October 06, 2006

Miguel

Hoje é feriado?


Foi o primeiro pensamento que atravessou Miguel enquanto olhava para a estranhamente deserta Rua das Flores. As fachadas características daquelas casas do Porto encontravam-se com as portas todas fechadas e a maioria das janelas também. A maioria dos carros estacionados que ali estavam na noite anterior continuavam no mesmo sítio e nenhum novo atravessava a estrada de paralelos.
"Feriado foi ontem", respondeu a si mesmo, o que o levou imediatamente a outro pensamento: Ah, devem ter feito ponte, quase de certeza! Mas ainda assim isso não explicava o porquê dos cafés e restaurantes estarem também fechados.

Terá acontecido alguma coisa? Algum acidente grande e foi toda a gente ver? Pensou novamente, considerando uma hipótese bem provável e agora questionando-se se terá sido para os lados da Ribeira (o que implicaria descer), ou para os Aliados (o que implicaria subir)? Ficou-se pelos Aliados, até porque era bem mais perto e, mesmo que não fosse lá poderia perguntar a alguém em São Bento afinal o que se passava. Lá certamente estaria alguém que o pudesse ajudar.

Começou a caminhar em direcção a São Bento quando se lembrou da asneira que estava prestes a fazer! O que quer que tivesse acontecido não iria certamente durar todo o santo dia e ele tinha uma audição mais logo. Audição de saxofone, à qual ele ia sem o dito cujo! Voltou a correr para trás, entrou no apartamento e começou a subir a escadaria com uma pressa sem qualquer razão aparente e que lhe fez regressar a dor de cabeça. O pulsar da veia da sua têmpora direita fez-lhe questionar o porquê de tal correria parva, e os seus pulmões massacrados pelas noites em bares fumarentos sublinharam a mesma questão.

Miguel não era nenhum atleta, muito longe disso. Magro, muito mais devido a todos os abusos e noites sem dormir. As linhas à volta dos seus olhos azuis começavam a vincar-se, prematuras para a sua idade (uns simples 27 anos), o seu cabelo escuro cobria-lhe parte do rosto e tinha uns aspecto oleoso. A barba, pouco cuidada, dava-lhe agora o aspecto de um mosqueteiro moderno. Tudo isto mais o seu rosto pálido, davam-lhe um ar muito pouco saudável e envelhecido. Um aspecto completamente diferente daquele que tinha à uns 5 anos atrás, antes de tudo, quando ainda vivia com os seus pais, quando ainda era seu filho.

Com mais cuidado subiu o resto dos degraus até ao seu apartamento, onde entrou para pegar na sua mais valiosa posse e saiu, sem se preocupar em trancar a porta, afinal não havia nada ali dentro que se preocupasse muito em perder.

Novamente caminhando a Rua das Flores (e interrogando-se se alguma vez ali haviam estado flores, tantas flores ao ponto da rua ganhar esse nome) e em direcção da Estação de São Bento. Uma inquietação começou a apoderar-se dele e que o fez acender rapidamente outro cigarro, pensado que era a privação de nicotina no corpo. Estranhamente fumar não o fez acalmar-se, pelo contrário, a inquietação aumentava a cada passo em direcção à Estação, mas Miguel não fazia ideia do motivo para isso.

Recortada pelos edifícios de ambos os lados da Rua começou a aparecer a fachada frontal da Estação e o pânico já estava praticamente instalado na mente de Miguel. Sem saber bem porquê começou novamente a correr, esquecendo o que isso lhe tinha feito à uns minutos atrás. Quando chegou ao fim da rua e estava completamente em frente da Estação ficou parado a olhar, incrédulo.

Ninguém.

Não estava ninguém na Estação. Ou fora dela. Ou nas ruas à volta.

Ele já por cá tinha passado a todas as horas possíveis do dia ou da noite e a Estação sempre tinha algum movimento, mas agora, em pleno meio-dia, ela estava deserta!

Miguel olhou para a esquerda, para o fundo daquela rua dava acesso aos Aliados. Correu novamente para lá e cedo o horror apoderou-se dele.

Os Aliados estavam desertos. Completamente desertos. Em pleno dia!

Que desastre poderá ter acontecido para que ninguém estivesse nos Aliados? Nem quando a porcaria das torres caíram lá na América isto ficou vazio, muito pelo contrário! Terá acontecido algo dessa escala mas aqui em Portugal? Mas onde? Ele não via nada nem ouvia nada que o pudesse sugerir.

E era isso que o mais assustava. Agora que ele pensava nisso, era este o motivo pelo pânico se ter apoderado dele tão cedo: o silêncio. Nunca o Porto tinha estado tão silencioso como agora. E este era um silêncio pesado, diferente de todos os outros que ele conhecia. Este era um silêncio total.

Miguel sentou-se no chão, no meio da estrada da Avenida dos Aliados e ficou a olhar em sua volta, apavorado de morte.
Patrícia

06-09-2006 – Life on Mars?

"Merda". Foi este o primeiro pensamento de Patrícia ao acordar naquela manhã de Setembro. Talvez fosse por já estar atrasada, talvez fosse pelo agradável sonho que o acordar tinha acabado de estragar, uma coisa era certa: era culpa do despertador. Não se ouvia som do quarto ao lado: o pai, André, já devia ter saído.

Eram 11 da manhã. Tinha menos de meia hora para se despachar e meter-se no Via Catarina onde se iria encontrar com Sofia, a melhor amiga com quem combinara passar o dia. As férias estavam quase no fim mas, apesar disso, o início de Setembro era o período favorito do ano para Patrícia. Gostava dos tons de amarelo com que o fim do Verão coloria a cidade. Era uma benção ver o Porto iluminado por outra cor que não o cinzento característico.

Do quarto para a banheira quase de um salto, Patrícia prepara o banho com que pretende lavar todos os pecados que cometera na noite anterior. “Merda”, pensou de novo ao constatar que se tinha metido debaixo do chuveiro com o pijama vestido. Despiu-o a custo pois a água que o ensopara colava-o ao corpo cândido e franzino da jovem pecadora. Ali estava: nua em frente ao espelho, a olhar o seu próprio corpo depois de tudo o que passara. “Ecce Homo” pensou enquanto se deixava julgar pela multidão de sabonetes, frascos de champô vazios, toalhas, cremes e lâminas de barbear. “Culpada” pensou. O Segundo Círculo do Inferno já a esperava.

De novo debaixo de água. Quente, muito. O suficiente para lhe provocar dor. A água parecia lavar-lhe o corpo como que uma chuva lavando um campo de batalha. Sentia-se culpada e isso, água nenhuma no mundo podia lavar. Mas eis que a alegria se sobrepunha à culpa, o desejo acima da razão.

Secou-se com uma toalha que atirou para um canto. Queria lá saber da desarrumação. Percorreu nua toda a casa até encontrar uma roupa interior que lhe aprouvesse. Balançava as ancas como que dançando ao som de uma música que não tocava. A pilha de roupa lavada quase a assustava. “Tenho de passar estas coisas a ferro”, pensou.

Música! Era isso que faltava para romper o silêncio quase sepulcral que imperava. “Hunky Dory, faixa 4, Life on Mars?” Era mesmo aquilo que ela precisava: o bom velho Bowie.

Já com algo mais do que o silêncio a acompanha-la, Patrícia vestiu-se com calma. “A Sofia que espere. Quando eu lhe contar o que se passou ela desculpa-me o atraso.” Comeu uma maçã numa passagem mais demorada pela cozinha. Não pode deixar de sorrir ao comer o fruto que servira para explusar Adão e Eva do Paraíso.

Já vestida pegou na mochila pejada com a parafernália do costume: livros, o estojo cheio de lápis e canetas e borrachas e pinceis, o seu eterno bloco de notas, CD’s e respectivo leitor portátil, a máquina fotográfica, rolos por revelar e fotografias. Olhou-se ao espelho antes de sair de casa. Estava bonita. Os olhos brilhavam-lhe, o cabelo ainda húmido escorria-lhe pelos ombros molhando-lhe a camisola. Piscou o olho à sua gémea do outro lado e saiu.

Silêncio. Foi tudo o que ouviu após o som do fechar da porta de sua casa ter-se desvanecido. Olhou em volta. Não viu ninguém.
Cristina

05-09-06

Chovia.

Grossas gotas de água caíam do céu e escorregavam-lhe pelos cabelos arruivados. Cristina gostava de chuva, mas não estar debaixo dela. Aconchegando a gabardine mais junto a si, numa tentativa de se abrigar, Cristina apressou o passo ao ver o seu carro estacionado sozinho no meio do parque. Abrindo a porta rapidamente, atirou o pesado saco de desporto que transportava para o banco do passageiro e entrando de seguida, passando rudemente a mão pelos cabelos molhados. Devia tê-los cortado mais curtos quando tinha chegado à Academia mas era teimosa e mimada, e gostava demasiado das grandes ondas, largas que nem punhos, que lhe chegavam até meio das costas, para acatar concelhos dos instrutores...

Um pequeno sorriso malicioso desenhou-se na sua bela face, queimada pelas férias pagas pelos pais no Natal anterior aos Alpes, ao pegar no telemóvel, obviamente também pago pelos pais. Várias chamadas. Nem se deu ao trabalho de as ver. Se quisessem, telefonassem de novo. Num acto de rebeldia, atirou o aparelho para cima do saco de desporto e ligou o carro. A aproximar-se das cancelas, colocou o cartão de identificação no vidro da janela. Não lhe apetecia molhar-se outra vez. O guarda acenou e abriu a cancela, olhando com algo desdém para Cristina. Ela sorriu-lhe num estilo gozão e acenou-lhe descaradamente. O homem resmungou, provavelmente contra os alunos da base. Cristina riu-se com desdém, os seus olhos azuis muito escuros adaptado-se à escuridão da noite.

A estrada que levava à Academia não tinha muita iluminação, e era bastante estreita, propícia a acidentes. Cristina já estava habituada. Embora já andasse na academia há três anos, ia todos os fins de semana a casa. Não gostava de socializar com os colegas. A maioria era muito dada ao estudo, e não tinham mais interesses do que estarem agarrados ao simulador. Não tinham propriamente uma vida social muito activa. Pilotar aviões também não era para mulheres. Ela seria uma das únicas que se tinha aguentado até ao terceiro ano de instrução. Estavam lá mais três, ferozmente competindo pelo primeiro lugar entre elas. Cristina não gostava desses ambientes. Embora fosse arrogante, nunca iria rebaixar fosse quem fosse, ou competiria por alguma coisa de maneira tão mesquinha. Era aquilo que era. E chegava. Sempre tinha sido assim. Nunca se esforçava muito. Apenas o suficiente. Quantas discussões tinha tido com o pai em mais nova, porque chegavam os papeis da escola, dizendo que ela estava entre os melhores, mas que podia ser muito mais se ao menos se esforçasse minimamente. Mas ela preferia andar de bicicleta com o irmão mais velho, ou a chatear a mãe, a aplicar-se na escola. A única vez que se aplicou, foi no ingresso à Força Aérea, mais por rebeldia contra os pais que outra coisa. O irmão tinha ido para pintura, tinha muito jeito para desenhar, mas a luta contra os pais para o conseguir tinha sido tumultuosa. Quando Cristina disse que iria ingressar no activo militar, a história do irmão tinha passado de vergonha para o orgulho da família. O irmão nunca lhe perdoou a ‘afronta’ de ter passado a ser o benjamim da família e muitas vezes brincavam com o assunto a sós.

As placas ainda lhe indicavam o caminho. Mesmo seguindo tantas vezes por aquela estrada, o seu sentido de orientação em terra resumia-se a saber as direcções, nunca as estradas que iam lá ter. Uma das coisas que gostava quando pilotava era mesmo isso. Ser livre de ir para onde quiser, como quiser, quando quiser. Não ter de cortar por um atalho, ou seguir uma estrada, uma regra.. Claro que insubordinações não eram toleradas, mas a liberdade de voar, mesmo com algumas restrições, era de facto fenomenal.

Sorrindo melancolicamente, Cristina reparou que quase passava a rua de casa, por distracção. Estacionou o carro na garagem e rapidamente pegou no saco, carregando-o para dentro de casa. Ao abrir a porta de casa, uma bola de pelo pequena e fofa enrolou-se nas suas pernas. Cristina pousou as chaves na mesinha do hall, pendurando a pesada gabardine no bengaleiro e agarrou no pequeno gato que ronronava satisfeito. Rapidamente despiu-se da roupa molhada, e após um banho quente e demorado, instalou-se no puff perto da janela enorme da sua sala, um livro nas mãos, e SIDEWINDER no colo. Estava tudo calmo, perfeito, enquanto Cristina bebia o chocolate quente e deleitava-se a ler o livro, o silêncio apenas quebrado pelo leve bater da chuva na vidraça, do crepitar da lenha a arder na lareira e o ocasional ronronar ou de uma página a virar...

De repente SIDEWINDER saltou do colo, e miou desolado. Suspirando, Cristina dirigiu-se à cozinha de modo a arranjar comida para o gato esfomeado. Não encontrando nenhuma lata Cristina suspirou. Tinha de ir à estação de serviço provavelmente, buscar uma latinha de comida para remediar a situação até ao dia seguinte. Enchendo um pires de leite para acalmar SIDEWINDER durante uns minutos, Cristina vestiu a gabardine por cima dos calções, top e tshirt que tinha e enfiou-se no carro, encaminhando-se para a gasolineira, o mais depressa possível. Já estava a meio caminho quando um avistou ao fundo da estrada um camião, recortado contra as luzes da estrada. Praguejando contra o imbecil que apenas trazia as luzes de presença ligadas, Cristina abrandou o passo. No entanto, o camionista acendeu os dois faróis enormes e em máximos, encadeando Cristina, o que a fez derrapar, e pivotear com o carro contra os rails de segurança. Cristina olhou em volta, meia entorpecida, mas agradecida pela maravilha dos airbags. Olhando em frente, a sua visão captou faixas ondulantes de luzes coloridas a entorpecer-lhe a vista e finalmente desmaiou.
Miguel


06-09-06


"Ahh, que merda de noite!", disse Miguel ao acordar.

O estúdio em que vivia permanecia na penumbra, com todas as cortinas corridas, sem o mínimo de luz. Era impossível de adivinhar que já era quase meio-dia dentro daquele apartamento. Apartamento esse em mísero estado: o papel de parede (às flores, daquele que se esperaria encontra nas paredes de uma viúva de 80 anos) começava a descolar, não tinha praticamente nenhuma mobília para além de uma velha aparelhagem, um colchão por cima das tábuas de madeira, improvisando uma cama, um armário velho, uma cozinha minúscula a um canto e uma casa de banho do tamanho de uma guarda-roupa. Era aqui que Miguel (Mike para os amigos) vivia nos últimos 4 anos.

Levantou-se lentamente. A sua cabeça pulsava e, embora nenhum som se ouvia, Miguel tapou os ouvidos, um gesto ritual ao acordar. Estranhamente hoje não precisava de o fazer, pois a Rua das Flores, a rua a que a porta de entrada do seu apartamento dava acesso, estava estranhamente silenciosa.
Miguel não deu importância a isto.

Sem abrir as cortinas com medo que a luz do sol lhe piore a já rotina dor de cabeça, este seguiu directamente à casa-de-banho aliviar a bexiga que parecia que ia arrebentar. Doeu-lhe enquanto urinava, mas não deu importância.

Depois, sem pressa, foi fazer algum café enquanto recordava a noite passada:Foi nos Maus Hábitos onde tocou o seu saxofone. Ele gostava de lá actuar já que o pessoal era porreiro e geralmente tinha bom gosto musical. O dono do sítio parece que era artista, ou já foi, o certo é que era um gajo porreiro que lhe oferecia as bebidas (demasiadas), para além de pagar bem por cada concerto! E a verdade é que ele merecia uma boa comissão, afinal era grande saxofonista e tocava bem as musicas de Morphine que constituíam o seu set. É certo que eram covers, mas eram boas, porra!

Fez o seu café e juntou-lhe algum leite que ainda tinha no frigorífico. Bebeu-o devagar para ver se lhe passava a dor de cabeça e começou a pensar no que ia fazer hoje: Havia um gajo que tinha estado no concerto de ontem e que tinha gostado daquilo que tinha ouvido. Disse que estava a precisar de um saxofonista para a banda sonora de uma peça de teatro que ia estrear no Carlos Alberto! Era a oportunidade de Miguel ganhar algum nome a fazer aquilo que gostava, para isso bastava ir à audição e mostrar aquilo que sabia fazer melhor.
Este pensamento fez com que a dor de cabeça praticamente desaparecesse.

Vestiu-se como se vestia normalmente: umas calças e uma camisa preta e calçou umas all-stars que tinha aos anos, antes de todos os putos as começarem a usar.

Desceu com cuidado a escadaria do prédio, já que o seu equilíbrio ainda não era dos melhores, mas o seu espirito era outro: estava definitivamente de bom humor, algo que já não acontecia à bastante tempo!
Saiu para a rua mas parou à entrada para acender um cigarro. Ainda tinha um pacote Camel consigo, tirou um, levo-o à boca e acendeu-o. Ainda teve tempo para dar umas baforadas até se aperceber da rua deserta que tinha perante si.