Friday, October 06, 2006

Patrícia

06-09-2006 – Life on Mars?

"Merda". Foi este o primeiro pensamento de Patrícia ao acordar naquela manhã de Setembro. Talvez fosse por já estar atrasada, talvez fosse pelo agradável sonho que o acordar tinha acabado de estragar, uma coisa era certa: era culpa do despertador. Não se ouvia som do quarto ao lado: o pai, André, já devia ter saído.

Eram 11 da manhã. Tinha menos de meia hora para se despachar e meter-se no Via Catarina onde se iria encontrar com Sofia, a melhor amiga com quem combinara passar o dia. As férias estavam quase no fim mas, apesar disso, o início de Setembro era o período favorito do ano para Patrícia. Gostava dos tons de amarelo com que o fim do Verão coloria a cidade. Era uma benção ver o Porto iluminado por outra cor que não o cinzento característico.

Do quarto para a banheira quase de um salto, Patrícia prepara o banho com que pretende lavar todos os pecados que cometera na noite anterior. “Merda”, pensou de novo ao constatar que se tinha metido debaixo do chuveiro com o pijama vestido. Despiu-o a custo pois a água que o ensopara colava-o ao corpo cândido e franzino da jovem pecadora. Ali estava: nua em frente ao espelho, a olhar o seu próprio corpo depois de tudo o que passara. “Ecce Homo” pensou enquanto se deixava julgar pela multidão de sabonetes, frascos de champô vazios, toalhas, cremes e lâminas de barbear. “Culpada” pensou. O Segundo Círculo do Inferno já a esperava.

De novo debaixo de água. Quente, muito. O suficiente para lhe provocar dor. A água parecia lavar-lhe o corpo como que uma chuva lavando um campo de batalha. Sentia-se culpada e isso, água nenhuma no mundo podia lavar. Mas eis que a alegria se sobrepunha à culpa, o desejo acima da razão.

Secou-se com uma toalha que atirou para um canto. Queria lá saber da desarrumação. Percorreu nua toda a casa até encontrar uma roupa interior que lhe aprouvesse. Balançava as ancas como que dançando ao som de uma música que não tocava. A pilha de roupa lavada quase a assustava. “Tenho de passar estas coisas a ferro”, pensou.

Música! Era isso que faltava para romper o silêncio quase sepulcral que imperava. “Hunky Dory, faixa 4, Life on Mars?” Era mesmo aquilo que ela precisava: o bom velho Bowie.

Já com algo mais do que o silêncio a acompanha-la, Patrícia vestiu-se com calma. “A Sofia que espere. Quando eu lhe contar o que se passou ela desculpa-me o atraso.” Comeu uma maçã numa passagem mais demorada pela cozinha. Não pode deixar de sorrir ao comer o fruto que servira para explusar Adão e Eva do Paraíso.

Já vestida pegou na mochila pejada com a parafernália do costume: livros, o estojo cheio de lápis e canetas e borrachas e pinceis, o seu eterno bloco de notas, CD’s e respectivo leitor portátil, a máquina fotográfica, rolos por revelar e fotografias. Olhou-se ao espelho antes de sair de casa. Estava bonita. Os olhos brilhavam-lhe, o cabelo ainda húmido escorria-lhe pelos ombros molhando-lhe a camisola. Piscou o olho à sua gémea do outro lado e saiu.

Silêncio. Foi tudo o que ouviu após o som do fechar da porta de sua casa ter-se desvanecido. Olhou em volta. Não viu ninguém.