Friday, October 06, 2006

Cristina

05-09-06

Chovia.

Grossas gotas de água caíam do céu e escorregavam-lhe pelos cabelos arruivados. Cristina gostava de chuva, mas não estar debaixo dela. Aconchegando a gabardine mais junto a si, numa tentativa de se abrigar, Cristina apressou o passo ao ver o seu carro estacionado sozinho no meio do parque. Abrindo a porta rapidamente, atirou o pesado saco de desporto que transportava para o banco do passageiro e entrando de seguida, passando rudemente a mão pelos cabelos molhados. Devia tê-los cortado mais curtos quando tinha chegado à Academia mas era teimosa e mimada, e gostava demasiado das grandes ondas, largas que nem punhos, que lhe chegavam até meio das costas, para acatar concelhos dos instrutores...

Um pequeno sorriso malicioso desenhou-se na sua bela face, queimada pelas férias pagas pelos pais no Natal anterior aos Alpes, ao pegar no telemóvel, obviamente também pago pelos pais. Várias chamadas. Nem se deu ao trabalho de as ver. Se quisessem, telefonassem de novo. Num acto de rebeldia, atirou o aparelho para cima do saco de desporto e ligou o carro. A aproximar-se das cancelas, colocou o cartão de identificação no vidro da janela. Não lhe apetecia molhar-se outra vez. O guarda acenou e abriu a cancela, olhando com algo desdém para Cristina. Ela sorriu-lhe num estilo gozão e acenou-lhe descaradamente. O homem resmungou, provavelmente contra os alunos da base. Cristina riu-se com desdém, os seus olhos azuis muito escuros adaptado-se à escuridão da noite.

A estrada que levava à Academia não tinha muita iluminação, e era bastante estreita, propícia a acidentes. Cristina já estava habituada. Embora já andasse na academia há três anos, ia todos os fins de semana a casa. Não gostava de socializar com os colegas. A maioria era muito dada ao estudo, e não tinham mais interesses do que estarem agarrados ao simulador. Não tinham propriamente uma vida social muito activa. Pilotar aviões também não era para mulheres. Ela seria uma das únicas que se tinha aguentado até ao terceiro ano de instrução. Estavam lá mais três, ferozmente competindo pelo primeiro lugar entre elas. Cristina não gostava desses ambientes. Embora fosse arrogante, nunca iria rebaixar fosse quem fosse, ou competiria por alguma coisa de maneira tão mesquinha. Era aquilo que era. E chegava. Sempre tinha sido assim. Nunca se esforçava muito. Apenas o suficiente. Quantas discussões tinha tido com o pai em mais nova, porque chegavam os papeis da escola, dizendo que ela estava entre os melhores, mas que podia ser muito mais se ao menos se esforçasse minimamente. Mas ela preferia andar de bicicleta com o irmão mais velho, ou a chatear a mãe, a aplicar-se na escola. A única vez que se aplicou, foi no ingresso à Força Aérea, mais por rebeldia contra os pais que outra coisa. O irmão tinha ido para pintura, tinha muito jeito para desenhar, mas a luta contra os pais para o conseguir tinha sido tumultuosa. Quando Cristina disse que iria ingressar no activo militar, a história do irmão tinha passado de vergonha para o orgulho da família. O irmão nunca lhe perdoou a ‘afronta’ de ter passado a ser o benjamim da família e muitas vezes brincavam com o assunto a sós.

As placas ainda lhe indicavam o caminho. Mesmo seguindo tantas vezes por aquela estrada, o seu sentido de orientação em terra resumia-se a saber as direcções, nunca as estradas que iam lá ter. Uma das coisas que gostava quando pilotava era mesmo isso. Ser livre de ir para onde quiser, como quiser, quando quiser. Não ter de cortar por um atalho, ou seguir uma estrada, uma regra.. Claro que insubordinações não eram toleradas, mas a liberdade de voar, mesmo com algumas restrições, era de facto fenomenal.

Sorrindo melancolicamente, Cristina reparou que quase passava a rua de casa, por distracção. Estacionou o carro na garagem e rapidamente pegou no saco, carregando-o para dentro de casa. Ao abrir a porta de casa, uma bola de pelo pequena e fofa enrolou-se nas suas pernas. Cristina pousou as chaves na mesinha do hall, pendurando a pesada gabardine no bengaleiro e agarrou no pequeno gato que ronronava satisfeito. Rapidamente despiu-se da roupa molhada, e após um banho quente e demorado, instalou-se no puff perto da janela enorme da sua sala, um livro nas mãos, e SIDEWINDER no colo. Estava tudo calmo, perfeito, enquanto Cristina bebia o chocolate quente e deleitava-se a ler o livro, o silêncio apenas quebrado pelo leve bater da chuva na vidraça, do crepitar da lenha a arder na lareira e o ocasional ronronar ou de uma página a virar...

De repente SIDEWINDER saltou do colo, e miou desolado. Suspirando, Cristina dirigiu-se à cozinha de modo a arranjar comida para o gato esfomeado. Não encontrando nenhuma lata Cristina suspirou. Tinha de ir à estação de serviço provavelmente, buscar uma latinha de comida para remediar a situação até ao dia seguinte. Enchendo um pires de leite para acalmar SIDEWINDER durante uns minutos, Cristina vestiu a gabardine por cima dos calções, top e tshirt que tinha e enfiou-se no carro, encaminhando-se para a gasolineira, o mais depressa possível. Já estava a meio caminho quando um avistou ao fundo da estrada um camião, recortado contra as luzes da estrada. Praguejando contra o imbecil que apenas trazia as luzes de presença ligadas, Cristina abrandou o passo. No entanto, o camionista acendeu os dois faróis enormes e em máximos, encadeando Cristina, o que a fez derrapar, e pivotear com o carro contra os rails de segurança. Cristina olhou em volta, meia entorpecida, mas agradecida pela maravilha dos airbags. Olhando em frente, a sua visão captou faixas ondulantes de luzes coloridas a entorpecer-lhe a vista e finalmente desmaiou.